Por Ester F. Vilas-Bôas C. do Nascimento[1]
Durante os 20 anos que investigo a ação protestante na educação brasileira, chamou minha atenção a presença de uma literatura religiosa produzida principalmente nos Estados Unidos, Reino Unido, Portugal e Brasil que começou a circular no país a partir do ano de 1818, nas igrejas, casas e bibliotecas de protestantes, nos mercados, feiras livres, hospitais, praças e nas escolas confessionais que paulatinamente foram organizadas por eles. Em forma de livro, livreto, folheto, opúsculo, jornais e revistas, instituições estrangeiras protestantes fizeram circular idéias, dogmas, preceitos, normas, valores, enfim, um ideal de civilização cristã – a protestante.
Os impressos protestantes que circularam no Brasil a partir do século XIX e seus usos ainda não foram devidamente estudados. Precedendo a organização de igrejas e escolas, a circulação da Bíblia e de Novos Testamentos iniciou discretamente em 1814, através da distribuição a bordo de navios portugueses e ingleses pelos capitães do navio, comerciantes e pessoal diplomático e militar. No ano de 1818, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (1804) enviou seu primeiro agente para o Brasil.
Os usos daquele material religioso ultrapassavam a área da Teologia, sendo também utilizados pedagogicamente como livros didáticos de leitura. Em 1837, o missionário metodista norte-americano Daniel Parish Kidder, em uma de suas viagens à Província de São Paulo, propôs à Assembléia Legislativa a utilização da Bíblia nas escolas primárias provinciais e se comprometeu a doar 12 exemplares para cada escola, caso a proposta fosse aprovada, o que não ocorreu. Ele afirmava que as Escrituras Sagradas eram um “livro muito recomendável a todos os mestres e diretores de aulas e colégios do Império do Brasil, para o adotarem como livro de instrução para os seus alunos”. Argumentava ainda sua importância pedagógica, como “a fonte de luz, a fontes de moral, a fonte de virtude, a fonte de sabedoria” (Jornal do Commercio, 12 de dezembro de 1837).
Até meados da década de 30 do século XX, instituições protestantes distribuíram aproximadamente 10 milhões de impressos de destinação religiosa e escolar. No entanto, a publicação, edição, distribuição, circulação e práticas de leituras são áreas de investigação quase intocadas durante um século pela historiografia educacional e confessional brasileira.
Este trabalho considera os impressos protestantes que circularam no Brasil como Bibliotecas Pedagógicas Protestantes, as quais foram utilizadas como estratégias para a construção de uma civilização cristã protestante e que tinha também o objetivo de conformar um campo pedagógico. As Bibliotecas, nesta investigação, devem ser compreendidas como “bibliotecas imateriais”, ou “bibliotecas sem muros”, no sentido elaborado por Chartier quando afirma que “uma biblioteca não é apenas o inventário de livros reunidos em um lugar específico; ela pode ser o inventário de todos os livros já escritos sobre qualquer tema” (Chartier, 1998: 74). A denominação de “pedagógicas” tem duplo sentido. O primeiro, de constituírem meios pedagógicos para forjar uma cultura protestante. São também de destinação pedagógica para serem utilizados em suas escolas e nas Escolas Bíblicas Dominicais. Elas são protestantes por que eram constituídas por protestantes e, principalmente, para protestantes. As bibliotecas pedagógicas protestantes funcionaram como uma das estratégias de inserção do protestantismo no Brasil. O conceito de estratégia, no sentido dado por Certeau (1994), é compreendido como uma prática que pressupõe a circunscrição de um lugar de poder que lhe é próprio.
O meio de compreender tais bibliotecas pedagógicas protestantes está relacionado à necessidade de, inicialmente, se rastrear e inventariar impressos protestantes que circularam no Brasil oitocentista, destinados a diversos segmentos sociais, com distintos objetivos, inclusive o educacional. Temas diversos compunham o corpus bibliográfico. Os mais variados tipos de impressos, publicados em português, inglês, italiano, francês, alemão e grego, eram destinados à devoção pessoal, eclesiologia, romanismo, espiritismo, à liturgia, missões, educação protestante, problemas sexuais, alcoolismo, ciência brasileira, sociologia, teologia pragmática, teologia exegética, teologia pastoral, teosofismo, evangelismo, apologética, política brasileira, batismo, heresia, Reforma protestante.
[1] Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUCSP. Mestre pela Universidade Federal de Sergipe. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes. Coordena o Grupo de Pesquisa História das Práticas Educacionais/UNIT. Membro do OBSERVARE/UFS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq desde o ano de 2012.
© Todos os direitos reservados