O Ex-voto

Por Luís Américo Silva Bonfim[1]

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“Milagre que fez o Sr. do Bonfim a menor Olívia Baptista Leite Borges que estando desenganada de febre amarela sua mãe implorou ao mesmo senhor foi atendida, 1892”.
Narrativa integrante de um ex-voto pintado, de autor desconhecido, pertencente ao acervo da Igreja do Senhor do Bonfim, Salvador-BA, Brasil. Óleo sobre tela, 62 x 58 cm, s/d. In: Estórias de dor esperança e festa: Ex-votos baianos (Séculos XVIII-XX). Salvador: Museu de Arte da Bahia, 1999. 24p: il. Catálogo de exposição.

Dor e cura, promessa e milagre. No texto manuscrito de um quadro do final do século XIX registra-se a profunda gratidão do devoto que retribui uma graça recebida. Em tons pastéis, a pintura apresenta uma jovem enferma deitada sobre uma cama, olhar cansado, corpo semi-coberto com um lençol branco e, sobre este, um lençol vermelho. Num dos cantos da tela, à esquerda da menina de traços andróginos, projeta-se na parede uma pequena e resplandecente imagem do Senhor do Bonfim, envolta por uma aura. Aos pés da cama, uma mesinha assenta um copo de vidro e uma colher, ao que parece, sucedendo mais uma tentativa de medicação. Mas eis que a menina se cura! E sua cura faz surgir o quadro, testemunho de uma vitória, ainda que parcial, da vida sobre a morte.

Este objeto ofertado ao Senhor do Bonfim é o que se chama de milagre ou ex-voto. Comumente toma-se o termo “ex-voto” como uma abreviação da expressão latina ex voto suscepto, que significa “por um voto alcançado”, ou “em consequência de um voto”.

O dicionário Houaiss o indica como um termo relativamente recente na língua portuguesa, cujo primeiro registro se deu em 1873. Segundo o folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo, o termo ex-voto é derivado do latim, votum, significando coisa prometida, e completa: “é o que se promete ao santo de devoção para se receber a graça, ou o que se oferece por tê-la alcançado”. Assim, é corrente entre os crentes localizar estas manifestações com o nome de “promessas”, quando apresentadas como um pedido (uma possível expressão do voto), e como “milagre”, designando, de fato, um testemunho de milagre, expressando assim um ex-voto.

Assim, o advento desta oferta fecha um ciclo transacional que se imagina tão antigo quanto a própria existência humana. Trata-se de uma expressão moderna da relação entre o frágil mundo dos homens e o inexorável mundo dos deuses. É uma relação cujo modelo estrutural se mantém semelhante em diferentes matrizes religiosas, desde a Antiguidade, entre os assírios e gregos: há a figura do pedinte, sujeito que perece e se mostra desamparado frente a questões da sua existência, o que o leva a formular pedidos de graças, que são endereçados a um outro – aquele em quem se acredita lhe poder atender – e cuja realização se sucede de um agradecimento, um gesto público, em geral, e do estabelecimento, no agraciado, de um vínculo de confiança.

A oferta votiva, nem sempre apresentada de forma tangível: a consagração do voto e, principalmente, a retribuição do ex-voto, podem substituir a representação física (a natureza expressiva material do objeto do pedido ou agradecimento, que se manifesta desde a produção de pequenas peças à construção de grandes templos), por atos, interdições, obrigações, denominações, gestos ou ritos, vindo sempre a apresentar formas e valores litúrgicos dos mais variados. Assim, é parte decisiva de um elo que pode se estabelecer em uma única oportunidade, ou pode acompanhar aquele que pede ou que recebe a benesse (conquanto nem sempre se trate da mesma pessoa) por toda a sua vida. Por outro lado, o advento de uma dádiva pode se dar mesmo sem que houvesse um pedido por parte do agraciado, o que pode lhe ensejar uma retribuição ou agradecimento.

Como ilustrou este caso do ex-voto ao Senhor do Bonfim, cuja devoção já caminha para além de dois séculos e meio, há nos ciclos votivos católicos a repetição daquela antiga estrutura fenomênica: a vicissitude, a devoção, o devoto, o voto (compromissado pela promessa), a graça (ou milagre) e o ex-voto; o que configura um sistema simbólico dinâmico e vigoroso. Designa-se o termo “votivo”, como amplo referente a tudo aquilo que concerne a estas relações do voto: súplicas, promessas, graças, milagres, oferendas, agradecimentos, devoções. Enfim, ao ciclo simbólico do dar-receber-retribuir dentro do campo religioso católico e suas variantes. Dessa forma, por “artes votivas” consideram-se não só as manifestações de agradecimento (ex-votos), mas a expressão do compromisso e das formulações de pedidos (votos) e a firmação do vínculo devocional, valorizando as suas diversas dimensões, que resultam em realizações, objetos ou performances.

Os crentes (fiéis devotos) falam em milagre, graça, mercê; os acadêmicos especulam sobre o dom e investigam a efetividade de uma suposta intervenção divina. Entre prodígios e favores, entre a crença e o ceticismo, esta tradição avança pelo tempo e se ajusta às novas realidades, renovando-se frente a toda sorte de mudanças nos ambientes socioculturais onde existe. E é destes ajustes que se pode constatar uma outra riqueza: a variedade das representações votivas que expressam os “bens” transacionados. Improvisados ou manufaturados, comprados prontos ou cuidadosamente preparados, estes artefatos mostram vigorosamente, numa perspectiva comparativista, os contrastes simbólicos e expressivos entre as diferentes comunidades católicas pelo mundo afora, comprovando a incrível persistência desta prática secular. Os ex-votos expõem as influências do imaginário popular, dos sistemas de valores compartilhados, do impacto das práticas produtivas; revelam parte considerável da vida cultural de um povo. As expressões votivas são também uma fala, traduzem desejos e necessidades, expõem sociabilidades, escondem e revelam preferências.

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[1] Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia (PPGCS/UFBA). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe (PPGCR/UFS). Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq Observatório Multidisciplinar de Religiões e Religiosidades/Observare (PPGCR/UFS). Membro Efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Um comentário em “O Ex-voto

  1. Offere,do latim trazer ou oferecer,o ato pode ser interpretado como um sacrifício de agradecimento.Um gesto,que dentro da sua gênese remonta os costumes da comunidade primitiva,em que a relação do homem com o meio (fenômeno natural), o vento, a chuva, o fogo,a cura,a doença,o elemento simbólico transmutava-se para o campo do sagrado,a atribuição aos deuses.A relação implica união,comunhão com o numinoso,ato que liga as duas dimensões entre o sagrado e o profano,possivelmente uma das primeiras expressões ritualísticas.E expressão que permanece na contemporaneidade,na sociedade moderna.

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